Cultivar o Vazio - Reflexão sobre o Capítulo 11 do Dao De Jing
- Raquel Silva
- 29 de jan.
- 7 min de leitura
No décimo primeiro capítulo do Dao De Jing, o Velho Mestre desafia-nos a questionar o valor daquilo que existe, na medida em que, muitas vezes, é aquilo que não existe que tem utilidade! Vamos então elaborar quanto à utilidade do vazio e a interdependência entre o ser e o não-ser.
Trinta raios partilham o eixo da roda do carro.
É o espaço no centro que o torna útil.
Ao moldar o barro num recipiente,
é o espaço vazio no interior
que o torna útil.
Quando se cortam portas ou janelas
é o espaço vazio entre elas
que os torna úteis.
O benefício vem do que está lá
enquanto a utilidade vem do que não está.
Na antiguidade, as rodas tinham trinta raios que se encontravam no centro, que era um círculo vazio. O Velho Mestre diz-nos que é o vazio dentro do recipiente, da roda, da porta e da janela que torna estes objetos úteis, ilustrando assim a clara importância do "vazio" ou da "ausência". A utilidade prática destas coisas não vem da matéria que as compõe, mas do espaço que nelas se abre. Este ensinamento transcende o mundo físico, revelando um princípio universal: o "vazio" permite o fluxo, a função e a criação.
António Campos comenta:
(...) quando se fala do Dao, o mais importante é o que fica por dizer. Cada frase é como um dedo a apontar para qualquer coisa de que não se consegue falar.
O Dao é algo que não se vê nem se fala, mas em que repousa a vida de todas as criaturas: é o "vazio" oculto e misterioso, cuja influência faz que tudo seja como é. Assim, o vazio é ativo e essencial, e não algo negativo ou meramente a ausência de matéria.
Solala Towler fala de “vazio” como Wu Ji (無極, literalmente sem limites, ou sem extremos), termo que também pode ser traduzido como “primordial” ou “a origem de todo o ser”. No primeiro capítulo o Velho Mestre alertou-nos que o ser e o não-ser têm a mesma fonte - nesta perspectiva, essa fonte é Wuji.
Wuji, ou o infinito, é invisível e só pode ser conhecido através dos seus efeitos;
Taiji é “o mundo da manifestação”, é o ponto de equilíbrio perfeito entre o Grande Yang e o Grande Yin, sendo chamado o Extremo Supremo ou Polaridade Suprema.
A relação entre Wuji e Taiji aprofunda a ideia de que o vazio não é apenas uma ausência, mas a origem criativa de tudo.
A propósito deste capítulo, Lúcia Helena Galvão questiona:
Será que não existe um vazio, um silêncio, uma serenidade dentro de nós que também nos dá utilidade? Nós tendemos a achar que somos matéria orgânica ou matéria psíquica, mas estas são apenas paredes. É dentro de nós que existe o que nos dá a utilidade.
A autora introduz uma perspectiva introspectiva, ao apontar que o vazio interior é um recurso valioso para a nossa utilidade. Aqui, ela parece sugerir que, assim como um recipiente vazio é útil para conter água ou grãos, o vazio dentro de nós permite-nos acolher experiências, conhecimento e paz. No mesmo sentido, António Campos comenta:
Quem busca a harmonia com o Dao deve esvaziar a mente para garantir que nada do que nesse vazio pode espontaneamente emergir seja impedido de surgir. E nunca se perguntar se está a fazer o que deve. Porque só seguimos pelo caminho certo, quando não existe esse perguntar e nos deixamos fluir como a água ou como um barco vazio flutuando sobre ela.
O autor captura bem o conceito de Wuwei (não-forçar ou ação espontânea) ao mencionar que o praticante do Dao não deve “se perguntar” ou racionalizar excessivamente se está no caminho certo. Ele associa o esvaziar da mente com uma forma de abrir espaço para a espontaneidade e a fluidez do Dao. A metáfora do barco vazio flutuando está alinhada ao ensinamento daoísta de deixar-se guiar pelo fluxo natural da vida. Ao esvaziar a mente de julgamentos, desejos e preocupações, tornamo-nos receptivos ao Dao, permitindo que ele nos guie sem resistência. Esta visão é muito compatível com práticas meditativas. Na meditação, procuramos criar um “espaço vazio” dentro de nós, silenciando a mente, para que a verdadeira serenidade e intuição possam emergir. É um vazio que não é ausência, mas sim um potencial pleno de possibilidades.
Regressando ao Taiji, Solala Towler acrescenta:
É considerado como o coração cósmico, bem como o coração humano. Desta forma, o nosso pequeno coração está ligado ao Grande Coração do universo. Quando somos capazes de nos esvaziar dos nossos pensamentos loucos e dos nossos pensamentos sobre esses pensamentos, somos mais capazes de nos ligar a esse grande vazio “e receber todas as coisas”.
A imagem da conexão entre o coração humano e o "Grande Coração do universo" é particularmente interessante para as práticas contemplativas e alquímicas, pois sugere que a vastidão do cosmos está refletida dentro de nós. Especificamente, o vazio dentro do Dantian (e outros centros energéticos) é visto como um campo fértil para transformação espiritual. No análise do terceiro capítulo já introduzimos o conceito de Dantian, o qual pode ser traduzido como “campo do elixir” e, na perspectiva de Solala Towler, “campo da medicina”, referindo-se a um tipo de medicina muito especial, uma medicina que cada pessoa cria no seu próprio corpo. Segundo o autor:
Há um lugar dentro de nós, o nosso Dantian, que está vazio mas cheio; é um espaço vasto que nos liga à vastidão do espaço fora de nós. Quanto mais conscientemente esvaziamos este espaço dentro de nós, limitando pensamentos e preocupações, mais vasto ele se torna e mais vastos nós nos tornamos.

Na Medicina Tradicional Chinesa (中醫 Zhongyi) o dantian inferior está associado à energia dos Rins (腎 Shen) e à Essência (精 Jing). Segundo a Teoria dos 5 Movimentos (Wuxing), a energia dos rins está associada ao movimento Água (水 Shui), pelo que o dantian inferior também está associado com a água. Por seu lado, o dantian médio fica no centro do peito, entre os dois mamilos, sendo considerado o centro do Coração (心 Xin), que está associado ao movimento Fogo (火 Huo). O dantian médio é também o lar do Shen 神, ou espírito, bem como da mente e cognição.
É colocando a nossa atenção, ou energia do fogo, no dantian inferior, ou centro da água, que criamos a verdadeira alquimia. A alquimia é vista como uma espécie de processo de “cozedura” em que a essência, ou Jing, é refinada em Qi, a energia vital.
A ideia de “cozinhar” o Jing (essência vital) no dantian inferior para transformá-lo em Qi (energia vital) e, depois, em Shen (espírito) é um dos pilares das práticas daoistas. Esta alquimia interna combina com a metáfora do vazio como espaço de transformação e potencialidade. Ao trabalhar a água do dantian inferior e o fogo do dantian médio, estamos a equilibrar os opostos para criar harmonia. Este equilíbrio reflete o próprio princípio do Dao, em que os opostos (Yin e Yang) interagem para criar o todo.
O capítulo 11 é, portanto, uma base para explorar:
O valor do vazio no mundo físico enquanto espaço que dá utilidade às coisas materiais;
O vazio como potencial criativo no mundo espiritual e emocional, sugerindo que a ausência de distrações ou excesso de pensamentos aumenta a nossa receptividade ao Dao;
O vazio como fonte de harmonia e transformação, conectando o indivíduo ao cosmos.
Como podemos trazer o conceito do "vazio" para a vida prática?
Partilhamos consigo práticas e reflexões que ajudam a vivenciar a ideia de Laozi: o vazio não é apenas ausência, mas o espaço onde a vida floresce.
Lembre-se, a filosofia do vazio pode ser incorporada em pequenos momentos diários:
Na pausa: Experimenta fazer pequenas pausas durante o dia para "esvaziar" a mente e estar no momento presente.
No silêncio: Dedique 5 minutos do dia a estar em silêncio absoluto, sem distrações, para honrar o vazio como espaço criativo.
Na comunicação: Durante conversas, pratique o uso de pausas e escuta ativa, valorizando o "espaço" entre as palavras como oportunidade de verdadeira conexão.
Movimento: Esvaziar e Preencher no Corpo
Objetivo: Trabalhar o conceito de vazio e plenitude através do movimento.
Prática inspirada no Qi Gong:
Comece de pé, com os pés afastados à largura dos ombros.
Ao inspirar, levante os braços suavemente até à altura dos ombros, como se estivesse a recolher energia do universo.
Ao expirar, imagine que está a "esvaziar" os pensamentos ou tensões para o solo, enquanto baixa os braços.
Alterne movimentos suaves e contínuos por 5-10 minutos.
Visualize que o seu dantian inferior (abaixo do umbigo) está a ser preenchido com energia tranquila e equilibrada.
Meditação da Alquimia Interna: O Fogo e a Água
Objetivo: Harmonizar a energia do coração e da mente com o centro energético do corpo, promovendo equilíbrio e vitalidade.
Preparação:
Escolha um local tranquilo onde possa sentar-se ou deitar-se confortavelmente.
Mantenha a ponta da língua no céu da boca para facilitar o fluxo energético.
Feche os olhos e leva a atenção para a respiração.
Instruções:
Respire lenta e profundamente, direcionando a respiração para o dantian inferior (três dedos abaixo do umbigo).
Visualize o fogo da mente e do coração a descer suavemente até à água do seu dantian inferior.
Permita que essa água aqueça e se transforme em vapor, subindo suavemente pelo seu corpo como Qi (energia vital).
Sinta esse fluxo de energia a preencher todo o seu ser, trazendo clareza, equilíbrio e bem-estar.
Mantenha a mente o mais vazia possível, tal como um recipiente pronto a ser preenchido por sabedoria e cura.
Finalização:
Quando terminar, esfregue as palmas das mãos trinta e seis vezes até gerarem calor.
Coloque-as sobre os olhos por um momento, permitindo que o calor os nutra.
Em seguida, esfregue suavemente o rosto pelo menos três vezes para despertar a energia e encerrar a prática.
Reflexão:
Após a prática, observe como se sente física e emocionalmente. Se possível, faça desta meditação um hábito diário para aprofundar a tua conexão interna.
Reflexão Guiada: O Espaço Interno como Fonte de Utilidade
Objetivo: Conectar a filosofia do vazio à introspeção pessoal.
Perguntas para reflexão:
O que está "ausente" na minha vida que me traz equilíbrio ou utilidade?
Que parte do meu interior considero "vazia", mas que me permite acolher experiências ou crescer?
Como posso criar mais espaço para o silêncio, o vazio ou o não-fazer (wu wei) na minha rotina?
Atividade prática: Pegue num papel e lápis. Desenhe um recipiente vazio e, dentro dele, represente simbolicamente o que aspira acolher no futuro.
(Pode assistir ao vídeo resumo da publicação aqui!)
Bibliografia
Lao Tse (2010). Tao Te King - O livro do Caminho e do Bom Caminhar. Relógio D'Água Editores [Tradução e Comentários de António Miguel de Campos].
Lao Tse (2022). Tao Te King - O livro do Caminho e da Virtude. Nova Acrópole [Tradução e adaptação de José Ramos e Graciete Silva Nogueira a partir das traduções de Stanslas Julien e James Legge; Comentários de Lúcia Helena Galvão Maya].
Towler, S. (2016). Practicing the Tao Te Ching - 81 Steps in the Way. Sounds True.
OpenAI. ChatGPT [Software]. https://openai.com
Imagem criada com inteligência artificial generativa [ideogram.ia].
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