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O poder da virtude- Reflexão sobre o Capítulo 10 do Dao De Jing

  • Foto do escritor: Raquel Silva
    Raquel Silva
  • 10 de jan.
  • 5 min de leitura

Atualizado: 28 de jan.

No décimo capítulo do Dao De Jing, o Velho Mestre desafia-nos com uma série de perguntas retóricas sobre a nossa própria natureza e introduz o conceito de De 德, Virtude.


Consegue manter o corpo (po)

e o espírito (hun) como um só?

Consegue evitar a sua separação,

concentrando o seu qi

e tornando-se flexível?

Consegue tornar-se como um

bebé recém-nascido?

Limpando a sua mente e

contemplando o profundo,

consegue manter-se sem defeitos?

Na abertura e no fecho dos portões interiores

consegue assumir o papel do feminino (yin primordial)?

Sendo recetivo e compreendendo todas as coisas

Consegue praticar o wu wei?

Consegue cultivar o fruto sem se apoderar dele?

Consegue fazer o trabalho sem ficar com os louros?

Consegue liderar sem dominar?

A isto chama-se virtude profunda (Te).


O Velho Mestre começa por nos desafiar a perceber até que ponto conseguimos alcançar uma unidade profunda entre corpo (po), espírito (hun) e energia vital (qi). Ao conseguirmos esta união, tornamo-nos flexíveis e adaptáveis, como um bebé recém-nascido. O nome de Laozi tem vários significados, sendo um deles, precisamente, “Criança Velha” (老 lǎo, como prefixo indica a ordem na fratria; velho (de pessoas); venerável (pessoa); etc.; e 子 zǐ, significa filho; criança; semente; coisa pequena...). Assim, o ideal mais elevado de sabedoria taoísta é um retorno à natureza infantil de abertura ao mundo, sem qualquer armadura ou medo.


Manter corpo e espírito como um só, fala do cultivo de uma consciência plena e integrada, onde não há separação entre o físico e o psíquico, para que possamos fluir com a vida, sem resistências. Numa camada mais profunda, a tradição chinesa fala de Três Hun e Sete Po:

  • 3 hun (魂), que são yang e estão ligados ao espírito, à consciência e ao reino celestial; e

  • 7 po (魄), que são yin e estão ligados à nossa natureza inferior, animal e ao reino terrestre.

Esta distinção ajuda-nos a compreender de forma mais clara as diversas forças que atuam no nosso interior. O hun, ligado ao céu, representa a nossa essência espiritual que busca a unidade com o Dao. Já o po, associado à terra, representa a nossa natureza mais instintiva, com os seus desejos e paixões. No momento da morte, o hun regressa ao reino espiritual ou celestial, e o po regressa ao reino terrestre, dissolvendo-se.

O sofrimento surge da desarmonia entre hun e po: quando o hun está desequilibrado leva à dispersão mental, sonhos excessivos e falta de propósito; por seu lado, quando o po está desequilibrado, causa apego ao material, medo, tristeza profunda. O seu equilíbrio promove harmonia entre espírito e corpo, e este é um dos objetivos centrais das práticas taoístas. Ao harmonizarmos estas duas forças, podemos transcender a dualidade e alcançar um estado de equilíbrio e paz interior.


O qi é a energia vital que permeia todas as coisas. Ao concentrá-lo, fortalecemos a nossa conexão com o Dao e tornamo-nos mais resilientes às adversidades. A flexibilidade, por sua vez, permite-nos adaptar-nos às mudanças e fluir com a vida. Desta forma, tornamo-nos como um bebé recém-nascido, no sentido em que a criança recém-nascida representa a pureza, espontaneidade e receptividade. Ao nos conectarmos com essa energia infantil, deixamos de lado os julgamentos e as expectativas, facilitando a abertura às experiências e isto é a marca de uma pessoa sábia.


Ao limparmos a mente e contemplarmos o profundo, alcançamos um estado de não-julgamento e não-dualidade. A prática da meditação e da contemplação ajuda-nos a silenciar a mente (nesta perspectiva mais associada ao po) e conectar com a nossa essência espiritual (hun). Consoante discutido no Cap. 4, o "jejum da mente" e "quietude da mente" são práticas essenciais para alcançar um estado de desapego, serenidade e conexão profunda com o Dao, permitindo uma vida em harmonia com a natureza e o universo. Isto é cultivar "virtude", eliminando assim os nossos defeitos e aproximando-nos da perfeição inerente a todas as coisas.


A abertura e o fecho dos portões interiores,  é uma metáfora que pode ser entendida em diversos níveis, tanto psicológicos quanto fisiológicos. A sua conexão com a respiração é particularmente interessante. A respiração é um dos pilares das práticas meditativas e do qigong. Ao controlar a respiração, estamos, de certa forma, a regular o fluxo de energia vital (qi) pelo corpo, e consequentemente, influenciamos o nosso estado mental e emocional.

  • Inalação e exalação como abertura e fecho: A inalação pode ser vista como uma abertura, um momento de receptividade, em que absorvemos a energia do universo. Já a exalação pode ser entendida como um fecho, um momento de libertação, em que soltamos as tensões e as impurezas.

  • Respiração lenta e silenciosa: Ao manter a respiração lenta e profunda, entramos num estado de calma e concentração, facilitando o acesso aos níveis mais profundos da consciência. A respiração silenciosa, por sua vez, ajuda-nos a silenciar a mente e a conectar com o interior.

  • A mudança de consciência também é um aspecto fundamental. Ao direcionar a nossa atenção para a respiração e para as sensações corporais, estamos, gradualmente, a desconectar-nos do mundo exterior e conectar-nos com o nosso mundo interior. Esta mudança de foco permite-nos assumir o papel do feminino, ou seja, tornamo-nos seres mais receptivos, passivos e intuitivos. Desenvolvemos a capacidade de gerir as nossas emoções e desejos, abrindo e fechando os "portões" da nossa mente de forma consciente.


Quando o Velho Mestre nos convida a assumir o papel do feminino (yin primordial, cf. cap. 6), o yin representa a receptividade, a passividade e a nutrição. Ao cultivarmos o yin, tornamo-nos seres mais receptivos às influências externas e mais conectados com a natureza. O yin representa a receptividade e a passividade, características mais próximas do hun. Assim, ao cultivarmos o yin, aproximamo-nos da nossa natureza espiritual.


Cultivar o fruto sem se apoderar dele, i.e., desfrutar dos frutos do nosso trabalho sem nos apegarmos a eles. Mais uma vez Laozi recomenda fazer o trabalho sem ficar com os louros, pois a verdadeira virtude consiste em servir sem buscar reconhecimento e liderar sem dominar - ou seja, inspirar e guiar sem exercer controlo.


O capítulo culmina com a afirmação de que a virtude profunda (De) consiste nestes aspetos: alinhar hun e po; cultivar o yin; limpar e purificar a mente; desapegar, inclusive do poder; cultivar o wuwei.


É comum que traduções ocidentais do Dao De Jing utilizem o termo "virtude" para representar De, o que pode levar a uma compreensão limitada deste conceito. O De, na verdade, transcende a mera moralidade. Ele representa uma força vital, uma energia cósmica que permeia todas as coisas e que, nos seres humanos, pode ser cultivada e desenvolvida através de práticas espirituais.


Aspectos importantes do De:

  • Poder espiritual: O De é frequentemente associado ao poder pessoal, à capacidade de influenciar os eventos e de transformar a realidade. É a força interior que impulsiona a ação e a criação.

  • Conexão com o Dao: O De está profundamente ligado ao Dao, a força primordial que ordena o universo. Cultivar o De significa alinhar-se com o Dao e fluir com a natureza.

  • Manifestação da virtude: Embora o De não se limite à moralidade, ele manifesta-se em ações virtuosas. Um indivíduo com alto nível de De tende a agir de forma espontânea e autêntica, em harmonia com o Dao.

  • Cultivo através da prática: O De pode ser cultivado através de diversas práticas, como a meditação, o qigong, a dieta e a conduta ética.


A distinção entre o De e a moralidade ocidental é importante. Enquanto a moralidade ocidental frequentemente se baseia em regras e normas externas, o De é uma força interior que surge da compreensão profunda da Natureza e da conexão com o Todo. As pessoas sábias possuem um De forte. São as pessoas que conseguiram cultivar esta energia interior e a utilizam para o seu bem e o bem comum.


O capítulo 10 do Dao De Jing convida-nos assim a cultivar a unidade interior, a simplicidade, a espontaneidade e a não-ação. Ao seguirmos estes princípios, podemos alcançar uma vida mais plena, harmoniosa e significativa.


(Pode assistir ao vídeo resumo da publicação aqui!)



Bibliografia

Towler, S. (2016). Practicing the Tao Te Ching - 81 Steps in the Way. Sounds True.

OpenAI. ChatGPT [Software]. https://openai.com

OpenAI. Gemini [Software]. https://gemini.google.com

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