O Retorno à Origem - Reflexão sobre o Capítulo 16 do Dao De Jing
- Raquel Silva
- 9 de mar.
- 6 min de leitura
No capítulo 16, o Velho Mestre convida-nos a permanecer num estado de vazio e quietude — tanto do corpo como da mente — para observar o mundo sem nos deixarmos envolver por ele.
Permita-se ficar vazio.
Permaneça na quietude.
Os dez mil seres crescem e florescem
enquanto a pessoa sábia observa o seu regresso.
Embora todos os seres existam em profusão
todos eles acabam por regressar à sua fonte.
O regresso à fonte chama-se tranquilidade.
Chama-se a isto regressar à natureza original (essência).
A natureza original é chamada de renovação constante.
Compreender a renovação constante chama-se iluminação.
Não compreender a renovação constante é convidar ao desastre.
Conhecer o imutável é ser iluminado.
Abraçar o eterno é ser todo-abrangente.
Ser abrangente leva à nobreza de espírito.
Ser nobre de espírito é unir-se ao Céu.
Unir-se ao Céu leva à união com o Dao.
Alcançar a união com o Dao leva à imortalidade,
Viver sem medo, eternamente.
Este estado de presença serena permite-nos reconhecer um princípio fundamental: todas as coisas nascem apenas para retornar ao não-ser, à sua origem. Assim, tudo o que existe acaba por regressar à raiz, ao fluxo natural da existência. Laozi chama a esse retorno tranquilidade, uma palavra que também evoca paz e harmonia. Este estado não é apenas um repouso passivo, mas a compreensão de que a verdadeira ordem do universo reside nesse movimento contínuo de regresso à essência. Tudo retorna à sua natureza original para vivenciar uma renovação constante. Tentar resistir a esse fluxo, agarrando-se ao transitório, apenas gera sofrimento e leva ao desastre. Por isso, a pessoa sábia não se opõe a essa renovação. Pelo contrário, identifica-se com a raiz imutável do não-ser, tornando-se, assim, um ser iluminado — aquilo que no taoísmo se chama de zhenren 真人, a “pessoa verdadeira” ou “pessoa perfeita”.
O objetivo do autoaperfeiçoamento, segundo Laozi, é precisamente essa união com a Origem, com o Dao. Quem alcança esta harmonia dissolve-se no fluxo perene da vida, transcendendo o medo da morte e tornando-se imortal na sua fusão com o Todo. Esta reabsorção no princípio eterno da existência não é uma fuga da realidade, mas o destino supremo (ming 命) de todos e todas nós — um retorno à fonte primordial, onde a vida e a não-vida deixam de ser opostos e tornam-se apenas expressões do Dao.
O Sono e a Meditação: O Retorno Diário à Origem
O Velho Mestre ensina-nos que tudo o que existe acaba por retornar à sua origem e é isto que permite a constante renovação da vida. Mas onde encontramos esta renovação no nosso dia a dia?
Na Medicina Chinesa, o sono é considerado um dos processos mais essenciais para o equilíbrio do corpo e da mente. Durante o descanso noturno, entramos naturalmente num estado de regeneração, onde a energia vital (Qi) se reorganiza, os órgãos recuperam a sua força e a mente liberta-se das amarras da consciência ordinária. O taoísmo descreve o sono como um retorno ao estado primordial, uma viagem ao não-ser que nos permite acordar reabastecidas, nutridas e transformadas.
Se pensarmos bem, o sono é um reflexo da própria dinâmica do Yin-Yang: durante o dia (Yang), estamos em plena atividade, interagindo com o mundo e gastando energia. À noite (Yin), recolhemo-nos para restaurar essa vitalidade, permitindo que o corpo e o espírito regressem ao seu centro. É um ciclo natural, inevitável e essencial para a nossa existência.
Meditação: Um Sono Consciente
Mas, e se pudéssemos aceder a esta renovação sem precisar adormecer? A meditação, especialmente a prática taoísta do zuowang 坐忘 ("sentar no esquecimento"), é uma forma consciente deste retorno à origem. Assim como no sono, a mente solta-se das suas preocupações e padrões habituais, mas sem perder a consciência. Em vez de simplesmente nos rendermos ao esquecimento involuntário do sono, aprendemos a entregar-nos ao vazio de forma intencional, permitindo que o espírito (Shen) repouse e se harmonize com o Tao. No zuowang, não tentamos controlar os pensamentos nem nos fixamos em imagens ou sons internos. Simplesmente deixamos de lado as distrações da mente racional e permitimos que a consciência se funda com o infinito. É uma entrega semelhante à do sono profundo, mas sem o apagar total da consciência — um estado de pura presença, onde nos tornamos um com a serenidade do universo.
Abraçar o Fluxo Natural da Vida
O Velho Mestre avisa que resistir à renovação apenas traz sofrimento. Quando lutamos contra os ritmos naturais do corpo e da mente — seja negando a necessidade de descanso, seja recusando a quietude — criamos tensão, desgaste e, eventualmente, doença. Da mesma forma que a natureza passa por ciclos de crescimento e recolhimento, também nós devemos aceitar os momentos de ação e os momentos de pausa como partes de um todo inseparável.
Tanto o sono quanto a meditação são oportunidades diárias para esse retorno à origem. No silêncio, aprendemos a descansar não apenas o corpo, mas também a mente. E, ao fazê-lo, renovamo-nos para viver de forma mais plena, espontânea e alinhada com o fluxo do Dao.
Zuowang: A Meditação do Esquecimento e a Quietude do Dao
Vamos aprofundar a prática taoísta do zuowang 坐忘, que pode ser traduzida como "sentar no esquecimento", "meditação da quietude" ou a já conhecida expressão "jejum da mente". Mas o que significa, afinal, "esquecer" nesta tradição? Diferente do esquecimento comum, que remete à perda de algo que deveria ser lembrado, zuowang refere-se à dissolução de padrões de pensamento e reações emocionais que nos afastam da nossa verdadeira natureza. Assim, esta prática não se trata de apagar memórias, mas de silenciar os ruídos internos que nos mantêm presas ao mundo condicionado.
O discípulo do Velho Mestre, Zhuangzi descreve esta experiência com precisão:
Não ouça apenas com os ouvidos, mas também com o coração-mente (xin). Não escute apenas com o coração-mente, mas também com o espírito (shen). O verdadeiro conhecimento, ou Dao, reside na quietude e no vazio.
A prática do zuowang é, portanto, um caminho para além da dualidade. Ao invés de utilizar os sentidos ou a mente analítica para alcançar estados superiores, como ocorre noutras tradições meditativas, o zuowang insiste na imediaticidade — uma entrega total ao fluxo do Dao, sem esforço ou intenção.
Embora esta forma de meditação tenha raízes em textos taoístas da antiguidade, ganhou forma sistemática na dinastia Tang (618-907), tornando-se um dos pilares da contemplação taoísta. Diferente de outras práticas que buscam clareza através da visualização, da audição interior ou da concentração em um objeto, o zuowang dissolve todos esses métodos e convida a praticante a um estado puro de presença, onde a mente se esvazia e o espírito se reflete como um espelho límpido do cosmos.
Os Desafios da Quietude
Para praticantes iniciantes, a meditação da quietude pode trazer dois desafios principais:
Excesso de pensamentos, onde a mente vagueia incessantemente.
Languidez e sonolência, quando o corpo relaxa demasiado.
Se notar a mente inquieta, retorne gentilmente ao estado de presença sem se apegar aos pensamentos. Se sentir sono, pode abrir ligeiramente os olhos, esfregar as palmas das mãos ou praticar movimentos suaves como tai chi ou qi gong antes da meditação.
O Retorno ao Eu Autêntico
Na profundidade do zuowang, ocorre uma transformação essencial: esquecemo-nos como um ser finito e reencontramo-nos como um ser infinito. Este estado é descrito por Zhuangzi como uma “perambulação sem rumo” pelo cosmos — uma liberdade plena, sem amarras mentais, onde a vida se desenrola sem esforço.
Ao trazer esta experiência para o quotidiano, libertamo-nos das amarras do pensamento dualista e abraçamos o fluxo natural da existência. Não se trata de uma fuga do mundo, mas de uma vivência mais autêntica e espontânea, onde o Dao se manifesta em cada ação e cada instante. E assim, como nos ensina o Dao De Jing, encontramos a verdadeira tranquilidade ao regressarmos à nossa fonte.
Bibliografia
Chuang Tse (1992). Capítulos Interiores. Editorial Estampa. [Tradução António Manuel Guedes de Campos, sobre a versão em língua inglesa de Gia-Fu Feng e Jane English]
Kohn, L. (2010). Sitting in oblivion: the heart of Daoist meditation. Three Pines Press.
Towler, S. (2016). Practicing the Tao Te Ching - 81 Steps in the Way. Sounds True.
Towler, S. (2019). Tao-Te King : uma jornada para o caminho perfeito : lições práticas sobre o taoismo. Editora Pensamento-Cultrix [prefácio de Chungliang Al Huang; tradução Claudia Gerpe Duarte e Eduardo Gerpe Duarte].
Texto revisto com OpenAI: ChatGPT [Software]. https://openai.com
Comments