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Quando tudo começa a desandar... - Reflexão sobre o Capítulo 18 do Dao De Jing

  • Foto do escritor: Raquel Silva
    Raquel Silva
  • 21 de mar.
  • 5 min de leitura

Quando o grande Dao é abandonado

a benevolência (ren)

e a retidão (yi) aparecem.

O intelecto e a esperteza dominam

e surge a grande hipocrisia.

Quando a família já não está em harmonia

surgem a piedade filial e o dever.

Quando o país está em confusão

surgem os problemas.

Então surgem os ministros leais.


O Velho Mestre abre o capítulo 18 do Dao De Jing com uma observação inquietante: Quando o Dao – o grande Caminho – é abandonado, surgem a benevolência (ren) e a retidão (yi). Virtudes nobres? Talvez. Mas para o Velho Mestre, elas são sinais de que já perdemos algo essencial. Do mesmo modo, quando a harmonia familiar desaparece, surge a piedade filial. E quando o país entra em colapso, surgem os ministros leais. Tudo isso são respostas emergenciais — como plantas que só brotam no solo da crise.


Para entender melhor este capítulo, é importante situarmo-nos historicamente. Afinal, o Dao De Jing não nasceu num vácuo.


Entre a espada e o pincel: o tempo das Cem Escolas

O contexto do Daoísmo remonta a dois períodos turbulentos da história chinesa: a era “Primavera e Outono” (770–471 a.E.C.) e a dos “Reinos Combatentes” (403–221 a.E.C.). Durante estas épocas, a China atravessou um profundo colapso político e moral. Mais de cem pequenos reinos lutavam entre si, e o antigo sistema feudal ruía.


Neste cenário caótico, surgiram reflexões urgentes sobre como reconstruir a ordem — ou se deveríamos simplesmente repensar o que entendemos por “ordem”. A efervescência intelectual deu origem ao florescimento das chamadas Cem Escolas de Pensamento, onde despontaram as grandes tradições filosóficas chinesas: Confucionismo, Daoísmo, Legalismo, Moísmo, entre outras.


Enquanto uns procuravam restaurar a harmonia perdida através da moral e da disciplina, outros questionavam se a verdadeira harmonia não estaria justamente em abandonar a rigidez e voltar ao fluxo natural da vida.


Confúcio: ordem, dever e virtude

No coração da proposta confucionista está o esforço por restaurar a sociedade através da ética e da educação. Confúcio (孔子 Kǒngzǐ, 551-479 a.E.C.), um antigo funcionário do Estado de Lǔ, viveu no final da era Primavera e Outono. Sentindo-se desalinhado com o seu tempo, percorreu vários reinos com os seus discípulos, tentando implementar a sua visão de uma sociedade harmoniosa baseada na moral e no respeito aos rituais.


Os conceitos centrais do confucionismo — Benevolência (Rén 仁), Ritual (Lǐ 禮), Piedade Filial (Xiào 孝), Rectidão Yì (义), Lealdade (Zhōng 忠) — eram pilares para uma convivência ordenada. Acreditava-se que, se cada pessoa se comportasse conforme o seu papel, a sociedade floresceria. A moral pessoal era o primeiro passo para a ordem pública. O ideal era tornar-se um Junzi (君子), um ser humano elevado, educado e moralmente exemplar.


Mas... será que cultivar virtudes a partir da necessidade de restaurar uma ordem perdida não é já sinal de que algo essencial se perdeu?


Laozi: voltar ao indizível

O pensamento do Velho Mestre (老子 Lǎozǐ) surge como um contraponto radical. Em vez de impor estruturas, ele propõe o regresso à espontaneidade. O Dao, para ele, é o princípio invisível e insondável que gera e sustenta tudo. É a Mãe do mundo, um vazio fértil, como um vale. Não é possível compreendê-lo através da razão — muito menos dos rituais ou das normas sociais.


Laozi vê com ceticismo as tentativas de moralizar uma sociedade já desconectada do Dao. Quando a virtude precisa ser ensinada, é porque já não brota naturalmente. A ação verdadeira, diz ele, é a não-ação (無為 wú wéi): agir sem forçar, sem controlar, sem interferir na ordem natural.


Daí a crítica mordaz do capítulo 18: quando tudo corre bem, ninguém fala em virtudes, porque estas se manifestam por si mesmas. Só quando há desarmonia surge a necessidade de discursos morais e deveres impostos.


Zhuangzi: o voo da borboleta

Foi 庄子 Zhuāngzǐ, discípulo do pensamento de Laozi, quem levou essa visão ao seu ápice poético e filosófico. Para ele, o problema do mundo está nas distinções rígidas que fazemos: certo e errado, alto e baixo, vida e morte. Tudo isso são fragmentações de uma unidade maior — o Dao.


A sabedoria, então, está em desapegar-se das formas fixas de pensar e vaguear livremente pelo cosmos, como a célebre borboleta do seu sonho. O objetivo é alcançar a unidade com o Todo, dissolvendo as tensões entre opostos e retornando a um estado de liberdade interior.


E então… o que fazemos com a benevolência?

Voltando ao capítulo 18, podemos perguntar: Laozi está mesmo a dizer que a benevolência é má?


Não exatamente. O que ele critica é a sua artificialidade quando surge como substituto do que deveria ser natural. É como um remendo bonito num tecido rasgado. Funciona... mas denuncia que o tecido se rompeu.


Quando uma sociedade precisa falar demais de ética, talvez seja porque já não vive eticamente. Quando exaltamos a piedade filial, talvez seja porque a harmonia familiar já desapareceu. Quando clamamos por lealdade política, é porque a confiança já se foi.


Laozi não nos convida a abandonar a virtude, mas a ir além dela — regressando ao ponto de origem onde nem precisamos nomear o que é bom, porque tudo simplesmente é.


Uma leitura para o nosso tempo

Não é difícil perceber por que razão o capítulo 18 do Dao De Jing continua tão atual. Também hoje, como na antiga China, atravessamos um tempo de fragmentação. Guerras ainda existem — algumas visíveis, outras mais silenciosas, travadas nas esferas do discurso, da identidade, das crenças e dos afetos.


Vivemos uma época em que quase tudo está exposto à desconstrução: valores, papéis familiares, modelos de autoridade, espiritualidade, até o próprio conceito de verdade. E é precisamente essa ausência de chão comum que faz proliferar discursos sobre virtude, autenticidade, empatia, equidade, saúde mental. Fala-se tanto desses temas... porque, no fundo, sabemos que algo se perdeu.


Multiplicam-se as terapias, os terapeutas, os guias e os métodos — e isso não é um mal. Mas, como diria Laozi, é também um sintoma. A sabedoria do Dao De Jing convida-nos a olhar para além dos paliativos, para além das soluções de superfície. Ela pergunta: será que estamos a tentar remendar aquilo que só se curaria com um regresso à simplicidade essencial?


Talvez, em vez de inventar mais respostas, seja tempo de silenciar, escutar, desapegar. Talvez a verdadeira cura venha não de mais esforço, mas de menos interferência. De confiar, de novo, no fluxo natural das coisas. Não se trata de rejeitar o progresso, a justiça ou a busca por sentido — mas de recordar que a ordem mais profunda não nasce do controlo, mas da sintonia com aquilo que já é.


O Dao, esse princípio invisível que tudo atravessa, não precisa ser construído — apenas reencontrado.


(Pode assistir ao resumo desta publicação aqui!)


Bibliografia

Lao Tse (2010). Tao Te King - O livro do Caminho e do Bom Caminhar. Relógio D'Água Editores [Tradução e Comentários de António Miguel de Campos].

Towler, S. (2016). Practicing the Tao Te Ching - 81 Steps in the Way. Sounds True.

Towler, S. (2019). Tao-Te King : uma jornada para o caminho perfeito : lições práticas sobre o taoismo. Editora Pensamento-Cultrix [prefácio de Chungliang Al Huang; tradução Claudia Gerpe Duarte e­ Eduardo Gerpe Duarte].

Texto revisto com OpenAI: ChatGPT [Software]. https://openai.com

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