Reflexão Psicológica sobre o desalento de Arjuna (1ª Estância da Bhagavad Gita)
- Raquel Silva
- 17 de fev.
- 5 min de leitura
A Bhagavad Gita é um dos textos mais profundos da humanidade, abordando temas como o sentido da vida, o dever e o autoconhecimento. No entanto, para além do seu significado espiritual e filosófico, a Gita também pode ser lida como uma metáfora das lutas internas do ser humano. Neste primeiro capítulo, encontramos Arjuna paralisado pela dúvida e pela angústia, um estado emocional que pode ser facilmente compreendido à luz da psicologia e da saúde mental.
Será que a sua crise no campo de batalha se assemelha à forma como lidamos com os nossos próprios desafios? Será que também nos encontramos, por vezes, paralisados pelo medo, pelo excesso de pensamento ou pela dificuldade de tomar decisões? É a partir deste ponto que começamos a nossa reflexão.
O Silêncio de Krishna e a Crise de Arjuna
No primeiro capítulo da Gita, Krishna tem apenas uma fala. Mas não se engane: ele é uma personagem central e essencial para a narrativa. Muitas vezes, o silêncio é a forma mais poderosa de comunicação.
Conduzindo a carruagem de Arjuna até o centro do campo de batalha, Krishna apenas diz:
Ó Partha, observa todos estes Kurus reunidos!
E, então, silencia.
Neste momento, algo acontece dentro de Arjuna. Ele olha à sua volta e, pela primeira vez, vê para além da guerra e do dever de lutar. Nas fileiras inimigas, reconhece pais, irmãos, primos, mestres e amigos de infância. Mas essa revelação não se limita apenas ao exército oposto—ele percebe que no seu próprio lado também há familiares e companheiros que terão que matar ou ser mortos.
Até este momento, Arjuna estava completamente focado no objetivo final: a vitória, a conquista do reino, a restituição da justiça. Agora, confrontado com a realidade crua da guerra, surge uma reação emocional avassaladora. O que antes parecia um propósito claro transforma-se numa tragédia iminente.
Arjuna e o Conflito da Mente Humana
O que acontece com Arjuna não é diferente do que enfrentamos na vida moderna. Quantas vezes já estivemos completamente convencidos de um caminho, apenas para, no último momento, sermos tomados pela dúvida?
A crise de Arjuna pode ser vista como um ataque de ansiedade ou um colapso emocional. Ele sente o corpo fraquejar:
“Ao ver as minhas gentes, ó Krishna, a postos e ansiosos por combater, abatem-se-me os membros e seca-se-me a garganta, levanta-se-me no corpo o tremor e o eriçar dos pêlos, o arco escorrega-me da mão e queima-se-me toda a pele, não sou capaz de manter a minha posição e a minha mente parece que rodopia.”
Se analisarmos os sintomas descritos por Arjuna, poderíamos compará-los a um ataque de pânico, conforme definido no DSM-5, onde são necessários pelo menos quatro dos seguintes sintomas para um diagnóstico:
Palpitações, coração acelerado
Tremores ou abalos
Falta de ar ou sensação de sufocamento
Náusea ou desconforto abdominal
Sensações de desmaio
Sudorese intensa
Calafrios ou ondas de calor
Sensação de irrealidade ou distanciamento de si mesmo
Medo de perder o controle ou de morrer
Não é exatamente isso que Arjuna descreve? Um estado de profunda agitação onde mente e corpo entram em colapso.
Mas, para além dos sintomas físicos, a sua mente começa a procurar justificações para evitar o combate:
“Eu não desejo o triunfo, nem o reino, nem os confortos.”
Este tipo de afirmação é um clássico mecanismo de defesa chamado negação. Como quando alguém diz: "Não me importo com essa promoção"—quando, na verdade, sempre a desejou. Ou quando uma vítima de violência doméstica justifica o comportamento do agressor: "Ele não é uma pessoa má, só estava nervoso".
Arjuna desejava a vitória. Sonhou com este momento. Mas, agora que está face a face com a realidade do que significa essa conquista, a sua mente recua. Ele sente que falhou, que talvez esta batalha não valha o sacrifício.
O Silêncio Terapêutico de Krishna
É aqui que Krishna se destaca. Ele não interrompe, não repreende, não argumenta. Apenas escuta.
Se olharmos por uma perspetiva psicológica, Krishna age como um terapeuta. Ele cria um espaço seguro onde Arjuna pode expressar todas as suas emoções e pensamentos sem julgamento. O seu silêncio não é passividade, mas sim uma forma de acolher o sofrimento de Arjuna, permitindo que ele esvazie a mente antes de receber qualquer ensinamento.
Na psicoterapia, este é um princípio fundamental: primeiro, escutamos. Primeiro, deixamos a pessoa desabafar, colocar para fora o peso da angústia. Somente depois é possível ajudá-la a reorganizar o pensamento e encontrar novas perspetivas.
Arjuna precisava deste momento de colapso para poder, em seguida, receber a sabedoria de Krishna.
A Bhagavad Gita como Guia para a Saúde Mental
A crise de Arjuna não é apenas um episódio isolado num épico hindu. Ela reflete a condição humana.
Na atualidade, transtornos como ansiedade e depressão são algumas das maiores causas de sofrimento mental no mundo. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS):
20% da população mundial vive com problemas de saúde mental
Portugal é o segundo país da Europa com maior prevalência de doenças psiquiátricas
As perturbações de ansiedade afetam 16,5% da população portuguesa
A depressão será a principal causa de doença no mundo até 2030
Mesmo com acesso a conforto e segurança, muitas pessoas sentem um vazio existencial, uma inquietação interna que as impede de encontrar paz.
Aqui reside a importância da Gita. Krishna não apenas acalma Arjuna, mas ensina-lhe um caminho para transcender o medo e o sofrimento, para agir com propósito e consciência. A Gita é, de certa forma, um manual para a saúde mental, uma ferramenta para aqueles que, como Arjuna, se sentem perdidos no campo de batalha da vida.
Conclusão: O Início da Jornada
O primeiro capítulo da Gita não nos traz respostas. Ele expõe a dor, o conflito, a dúvida. É um espelho da condição humana, mostrando como as grandes batalhas não acontecem apenas no mundo exterior, mas dentro de cada um de nós.
Este é apenas o início da jornada de Arjuna. Para ele. Para nós.
A pergunta que fica é: quando nos encontrarmos paralisados pelo medo e pela incerteza, conseguiremos ouvir a voz da nossa própria sabedoria interior? Ou, tal como Krishna faz com Arjuna, conseguiremos oferecer escuta e compaixão a nós mesmos antes de agir?
A Bhagavad Gita não nos pede fé cega, mas sim que investiguemos o nosso próprio coração. Que reconheçamos os momentos em que somos Arjuna—e que aprendamos a escutar a voz do nosso próprio Krishna interior.
A jornada de Arjuna começa com o desalento, mas não termina nele. A grande lição da Gita é que a vida não nos pede ausência de medo, mas sim a coragem de agir apesar dele.
Que este seja o início da nossa própria jornada para uma vida mais plena e alinhada com o nosso verdadeiro propósito.
Bibliografia
American Psychiatric Association (2014). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM-5. Artmed [tradução de Maria Inês Corrêa Nascimento et al.; revisão técnica coordenada por Aristides Volpato Cordioli].
Swami Chinmayananda (1996). Holy Geeta. Central Chinmaya Mission Trust [Comentários de Swami Chinmayananda].
Vyasa (2022). Bhagavadgita: O Canto do Bem-Aventurado. Edições Agnimile/Nova Acrópole [tradução do sânscrito e introdução por Ricardo Louro Martins].
SPPSM. Perturbação Mental em Números [Disponível em: https://www.sppsm.org/informemente/perturbacao-mental-em-numeros/; consultado em 16/02/2025].
WHO (2013). Investing in mental health: evidence for action. World Health Organization [Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/87232/9789241564618_eng.pdf;jsessionid=979278CBFBCE772579F2F6046BB87B38?sequence=1; consultado em 16/02/2025].
Texto revisto com OpenAI: ChatGPT [Software]. https://openai.com
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