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Sacrificar ilusões - Reflexão sobre o Capítulo 5 do Dao De Jing

  • Foto do escritor: Raquel Silva
    Raquel Silva
  • 7 de ago. de 2024
  • 7 min de leitura

Atualizado: 11 de jan.

Continuamos o estudo da obra Dao De Jing (道德經, Dào dé jīng), entrando no quinto capítulo, um convite à reflexão sobre a imparcialidade da Natureza e a importância de adotarmos uma postura semelhante, que valoriza o vazio, a potencialidade, e a simplicidade:


O Céu e a Terra não são benevolentes.

Tratam todos os seres como cães de palha.

A pessoa sábia não é benevolente.

trata todos os outros seres como cães de palha.

O espaço entre o Céu e a Terra

é como um fole.

Está vazio, mas nunca se esgota,

sempre em movimento,

mas sempre produzindo mais.

Menos palavras são melhores do que muitas.

É melhor obedecer à nossa verdadeira natureza.


O pensamento do Velho Mestre sobre o Dao e a natureza imparcial do universo pode ser desconcertante à primeira vista. As suas palavras apontam para a inexistência de uma divindade personalizada que nos ama incondicionalmente e recompensa por boas ações.


Aqui, o conceito de "benevolência" refere-se à ideia de que o Céu e a Terra (isto é, a Natureza) não possuem uma moralidade ou bondade humana. A Natureza trata todos os seres de forma igual, sem favoritismo ou discriminação, assim como "cães de palha" -  figuras feitas de palha, usadas em rituais antigos na China, que eram valorizados durante o ritual, mas descartados após o uso.


A propósito desta passagem, Su Zhe (蘇轍 Su Zhe), um dos grandes pensadores da dinastia Song, comenta:

O Céu e a Terra não são parciais. Não matam os seres vivos por crueldade, nem lhes dão à luz por bondade. Fazemos o mesmo quando criamos cães de palha para usar em sacrifícios. Vestimo-los e colocamo-los no altar, mas não porque os amamos. E quando a cerimónia termina, atiramo-los para a rua, mas não porque os odiamos.

O pensamento da época defendia que o Céu protegia, recompensava e castigava os humanos. O Velho Mestre introduz esta imagem: não há uma entidade superior a gerir o mundo, tudo emerge espontaneamente do Nada e tudo acontece por si. Não há entidades a quem rezar, apenas a necessidade de fluir com a vida e aceitar os eventos naturais, mesmo os mais desafiadores, como parte do curso natural das coisas. Assim como as flores não procuram elogios, apenas florescem para cumprir o seu propósito na Natureza, o Dao age de maneira impessoal, sem se importar com as nossas preces ou promessas. Da mesma forma, os desastres naturais não são castigos divinos, mas eventos naturais que seguem o seu curso. Nesta perspectiva, a sabedoria está em compreender e aceitar a imparcialidade do Dao e fluir em harmonia com ele, sem procurar recompensas externas. É a vida alimentando a vida, num ciclo contínuo e imparcial que nos convida a encontrar a nossa própria paz e equilíbrio interior.


Para muitas pessoas, a ausência de uma divindade personalizada pode gerar receio e incerteza. A ideia de não haver um "juiz supremo" que nos observa e guia, premiando ou punindo as nossas ações, pode levantar questões sobre como discernir entre o certo e o errado, ou como conduzir uma vida ética e justa. A falta da figura divina traz à tona a preocupação sobre como os indivíduos serão responsabilizados pelas suas más ações.

No entanto, Laozi convida-nos a contemplar e imitar o Dao, a repensar as nossas noções pré-concebidas de moralidade e justiça, sugerindo que a resposta para tais questionamentos pode residir numa compreensão mais profunda e holística do equilíbrio e da harmonia do universo. Ao adotarmos a visão do Dao, podemos encontrar um caminho para além das convenções morais tradicionais e abraçar uma ética baseada na conexão com a Natureza e na busca pela sabedoria interior. Assim, ao invés de temer a ausência de um juiz divino, o convite é confiar na ordem intrínseca do universo e no poder transformador de viver em sintonia com o Dao.


A obra também nos diz, que não só o Céu e a Terra são imparciais, as pessoas sábias também o são. Como temos vimos a falar, a pessoa sábia, ou a verdadeira praticante do Dao, deve adotar uma postura semelhante à do Dao (ou da Natureza). A sabedoria não está em agir com benevolência conforme os padrões humanos, mas em reconhecer a imparcialidade e a indiferença do fluxo natural. Tratar todos os seres de forma igual, sem apego ou favoritismo, é um reflexo desta compreensão. Para a pessoa sábia, comenta António Campos:

... os acontecimentos são como sombras de árvores que se deslocam por cima dela durante o dia, sem a afetarem. Elas varrem o chão, mas tudo nela continua imperturbável. A mente deve ser como um espelho que reflete tudo o que vem, sem o analisar.

Quando o Velho Mestre nos diz que "o espaço entre o Céu e a Terra é como um fole" (instrumento usado para aumentar o fluxo de ar em fogões e forjas) ele traz-nos a imagem de que embora o fole esteja vazio, ele tem um potencial infinito para gerar vento. Esse vazio é essencial para a sua função, e esta é uma ideia fundamental no pensamento taoísta - o vazio e a potencialidade são fundamentais no funcionamento do universo.


António Campos, continua:

E ela [a pessoa sábia], deve manter-se o mais vazia possível, na serenidade do ar que ainda não saiu do fole, ou seja, no estado anterior ao surgir das coisas, das palavras, dos conceitos e dos pensamentos.

Quando Laozi enfatiza que poucas palavras são mais eficazes do que muitas, ele demonstra o seu compromisso com a clareza e a simplicidade na comunicação. Ele sugere que falar menos e agir de acordo com a nossa verdadeira natureza é preferível a tentar explicar ou controlar tudo com palavras. O verdadeiro entendimento e a ação correta vêm de um lugar de quietude e de estar em sintonia com o Dao.

Laozi não apenas oferece um conselho sábio, mas também pratica o que ele mesmo prega - o Dao De Jing está entre as obras espirituais mais curtas!

Ao valorizar a precisão e a economia de palavras, o Velho Mestre ressalta a importância de evitar a redundância e a prolixidade. A verdadeira sabedoria está enraizada na simplicidade e na clareza de expressão. Num mundo onde a comunicação muitas vezes é excessiva e confusa, a sabedoria de Laozi inspira-nos a sermos mais conscientes nas nossas interações enfatizando que a qualidade das nossas palavras é mais importante do que a quantidade: falar diretamente de um coração (xin) para outro.


Outro aspeto que devemos ter em atenção é que perdemos muito qi (energia vital) ao falar, por isso, falar de forma direta e sucinta permite preservar a nossa energia para então termos combustível para sustentar o nosso trabalho de cultivo interior.


Finalmente, o Velho Mestre conclui que devemos obedecer à nossa verdadeira natureza. Mas qual é a nossa verdadeira natureza? A verdadeira essência de quem somos muitas vezes encontra-se obscurecida por camadas de influências externas e experiências pessoais que ao longo do tempo se foram acumulando. Como viajantes nesta jornada da vida, é nosso dever dedicarmo-nos a desvelar esses véus que nos cobrem, permitindo assim que a nossa autenticidade possa emergir. À medida que avançamos no nosso caminho, gradualmente essas camadas de aculturação e história individual vão se dissipando, revelando a nossa verdadeira natureza. Cada véu que removemos é um passo em direção à nossa realização plena, um retorno à essência que reside dentro de cada um e cada uma de nós. Com paciência e determinação, podemos despir-nos das máscaras que nos foram impostas.  Ao desvelarmos a nossa verdadeira natureza, estaremos em sintonia com a harmonia universal, brilhando com a sabedoria que nos é inerente como seres do Dao. Por exemplo, as pessoas sábias não ensinam por causa de uma ideia altruísta de benevolência para com a humanidade, elas ensinam porque é exatamente isso que fazem, esta é a sua natureza. Uma das principais lições do Daoismo é que podemos compreender e experimentar quem realmente somos e viver uma vida no mundo fazendo exatamente o que fazemos naturalmente. Cabe-nos a nós, individualmente, praticar o autocultivo e aprender a seguir o fluxo natural do Dao para que assim seja.


Neste capítulo, o Velho mestre enfatiza que a verdadeira sabedoria reside em viver em harmonia com o Dao, reconhecendo a transitoriedade e a igualdade de todas as coisas, e praticando uma economia de palavras e ações. Seguir o fluxo natural das coisas e agir com simplicidade e clareza é o caminho para a harmonia. Para o fazer, devemos honrar a nossa jornada de descoberta e evolução, reconhecendo que a remoção dos véus é um processo gradual e transformador que nos aproxima do Dao.


Prática: Respiração em fole


  • Sente-se calmamente na ponta de uma cadeira ou numa almofada. Feche os olhos e respire lenta e profundamente pelo nariz preenchendo o seu dantian inferior. Sinta todo o seu abdómen inferior expandir-se com cada respiração, desde a frente, os lados e a parte inferior das costas. A cada expiração, exale completamente, esvaziando os pulmões enquanto o ventre se contrai o mais possível.

  • Sinta o movimento da inspiração e da expiração como um fole que mantém aceso o fogo da compreensão e do conhecimento. Esvazie a sua mente e deixe a respiração acontecer naturalmente, uma respiração a seguir à outra, sem esforço.

  • Alternativamente, imagine que está a ser "ser respirada/o", porque é como se não fosse você a fazer a respiração. Em vez disso, está a ser respirada/o juntamente com a transformação contínua da inspiração (yin) e da expiração (yang). Sinta-se como um exemplo vivo do famoso símbolo yin/yang - 太極圖 tàijí tú - em constante movimento, dançando entre polaridades. Passando tempo suficiente a praticar este estado, permitirá que leve este sentimento para o resto da sua vida.

  • Quando terminar, esfregue as palmas das mãos 36 vezes e depois massaje o rosto, lenta e suavemente, mantendo os olhos fechados até terminar.

  • Quando abrir os olhos, olhe à sua volta. Talvez veja o mundo sob uma nova luz, um mundo iluminado pelo fogo da sua sabedoria interior.


(Pode assistir ao áudio desta prática aqui e ao resumo da publicação aqui!)


Referências bibliográficas

Lao Tse (2010). Tao Te King - O livro do Caminho e do Bom Caminhar. Relógio D'Água Editores [Tradução e Comentários de António Miguel de Campos].

Red Pine (1996). Lao-tzu's Taoteching. San Francisco: Mercury House.

Towler, S. (2016). Practicing the Tao Te Ching - 81 Steps in the Way. Sounds True.

OpenAI. (2021). ChatGPT [Software]. https://openai.com/

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