Voltar ao Corpo, Voltar ao Dao - Reflexão sobre o Capítulo 19 do Dao De Jing
- Raquel Silva
- 27 de mar.
- 5 min de leitura
No décimo nono capítulo o Velho Mestre ensina:
Abandona a sabedoria,
renuncia ao saber intelectual —
e o povo será cem vezes mais feliz.
Deixa de lado a "virtude",
rejeita a "benevolência" —
e as pessoas reencontrarão
o afeto natural e a compaixão verdadeira.
Abandona a esperteza,
esquece o lucro próprio —
e não haverá mais ladrões nem trapaceiros.
Mas estas são apenas soluções externas.
Não bastam.
Segue antes este conselho:
Sê simples por dentro,
abraça o que é natural.
Reduz o teu ego,
modera os teus desejos.
Larga o saber adquirido —
e encontrarás a paz.
O Velho Mestre inicia este capítulo com um aparente paradoxo: “Abandona a sabedoria”. Como entender esse conselho vindo de alguém que, ao longo da obra, tanto exalta as pessoas sábias e o seu wu wei — o agir sem esforço?
O que Laozi parece criticar não é a sabedoria em si, mas a ilusão de que sabemos o que é ser sábio. A pessoa verdadeiramente sábia, para o taoismo, não ostenta conhecimento: é alguém que “sabe sem saber que sabe”. Ao contrário do confucionismo, que associa a virtude à educação e à obediência às normas, o taoismo propõe um regresso à inteligência inata, espontânea, anterior à domesticação social — ao que poderíamos chamar de humano "natural” ou “primitivo”.
Zhuangzi, herdeiro do pensamento de Laozi, descreve assim esses tempos antigos:
Em tempos muito antigos, os humanos tinham ar sereno. Moviam-se tranquilamente, sem objetivo. Tendo comida, ficavam contentes e passeavam, dando palmadas na barriga. (...) Mas, para os manter submissos, surgiram vénias e cerimónias, leis e regras, caridade e dever. E a dúvida e a confusão instalaram-se na mente dos humanos, que começaram a querer alterar a sua natureza, e a trabalhar e a lutar uns com os outros, movidos pelo desejo de ganhar. Uma luta sem fim.
Muitas pessoas falam sobre iluminação, mas poucas sabem verdadeiramente o que ela significa. O taoismo utiliza a palavra Xianren (仙人 xiàn rèn) para descrevê-la — um termo que pode ser traduzido como “imortal” ou “transcendente”. Zhuangzi oferece-nos uma descrição desse tipo de ser:
Muito longe, no monte Ku, vive um homem santo. A sua carne e a pele são como gelo e neve; é gentil como uma jovem. Não come nenhum dos cinco grãos, mas faz grandes inspirações de vento e bebe orvalho. Navega nas nuvens, monta um dragão voador e vagueia pelos quatro mares. Usando os seus poderes espirituais, pode proteger criaturas da doença e da decadência e garantir uma colheita farta.
À primeira vista, trata-se de uma figura inalcançável. Mas é inalcançável, na medida em que, como explica Zhuangzi:
O cego não pode apreciar motivos belos, o surdo não pode ouvir os sons dos sinos e dos tambores. A cegueira e a surdez não são apenas físicas, podem também ser mentais.
Talvez o objetivo não seja tornar-nos como este homem santo — talvez o verdadeiro ensinamento seja abandonar a própria ideia de meta. Seguir os preceitos que Laozi apresenta no final deste capítulo pode ser mais transformador do que qualquer ideal transcendental.
O convite é claro: abandonar o conhecimento adquirido — o saber dos livros, da mente, da repetição. Laozi não valoriza a aprendizagem como acumulação, mas como desaprendizagem. Ensinar, para ele, é viver de modo exemplar, permitindo que o outro se transforme pela presença, não pelo discurso. Assim, as pessoas reencontram a compaixão, a simplicidade e a verdade — e já não há espaço para o egoísmo nem para o crime.
Os preceitos são três, e são internos:
– Conhecer o que é natural e abraçar a simplicidade (pu);
– Reduzir o senso do eu (o ego);
– Atenuar os desejos (mesmo o desejo de ser sábio).
Estas atitudes não podem ser “ensinadas” no sentido tradicional — elas devem ser encarnadas. Não pertencem ao domínio da cabeça, mas ao do coração… ou melhor, ao do ventre.
Há um tipo de sabedoria que não passa pela mente racional. Um saber mais profundo, enraizado no corpo, no centro vital que o taoismo chama de dantian. Viver a partir do dantian muda completamente a nossa relação com o mundo: a ação torna-se mais centrada, o pensamento mais calmo, a escuta mais ampla. Mas para isso, é preciso cultivar esta conexão — ou melhor, permitir que ela se revele, com prática, presença e confiança.
Curiosamente, essa imagem do ventre como sede da sabedoria encontra eco nas descobertas recentes da ciência. Hoje, fala-se do intestino como o nosso “segundo cérebro”. O sistema nervoso entérico — uma rede de mais de 100 milhões de neurónios que reveste o trato digestivo — comunica diretamente com o cérebro por meio do nervo vago. Esta rede produz mais de 30 neurotransmissores, incluindo a serotonina, responsável pela regulação do humor e do bem-estar.
Além disso, o intestino é a casa da microbiota intestinal: trilhões de microrganismos — bactérias, vírus, fungos — que habitam o nosso corpo e influenciam diretamente o nosso sistema imunitário, o metabolismo e até o comportamento. A microbiota participa na digestão, na produção de vitaminas e na regulação do apetite. Mas também tem impacto no humor, nas emoções, e até na tomada de decisões. Estudos associam desequilíbrios na microbiota a condições como obesidade, diabetes, autismo, doenças autoimunes, depressão e ansiedade.
Este ecossistema interno é tão complexo e interativo que existem cientistas que o consideram um “órgão” em si. E, tal como uma impressão digital, cada pessoa tem uma microbiota única — moldada pela sua alimentação, ambiente, emoções e estilo de vida.
Se olharmos por esta lente, percebemos que talvez Laozi estivesse certo ao confiar mais na sabedoria do corpo do que no conhecimento das palavras. O ventre escuta o mundo — escuta os alimentos, o stress, a ternura, o silêncio. E, por vezes, responde com mais clareza do que a mente.
Manter a microbiota equilibrada é uma forma de cuidar do nosso “ambiente interno” — de voltar ao estado natural que o taoismo tanto valoriza. É uma forma de restaurar a ligação com a sabedoria do nosso corpo, essa inteligência silenciosa que sabe o que fazer sem que lhe digamos como.
Talvez a “imortalidade” que Laozi menciona não seja um feito mágico, mas um modo de ser. Um estado de presença radical, de desapego ao ego e de sintonia com o fluxo da vida. Não é algo a alcançar — é algo a recordar.
Ao desistirmos da aprendizagem intelectual e nos abrirmos à experiência direta do Dao, talvez descubramos que a verdadeira sabedoria sempre esteve connosco. E que o caminho para a paz começa… no ventre.
(Pode assistir ao resumo desta publicação aqui!)
Bibliografia
Chuang Tse (1992). Capítulos Interiores. Editorial Estampa. [Tradução António Manuel Guedes de Campos, sobre a versão em língua inglesa de Gia-Fu Feng e Jane English]
Chuang Tse (2017). Chuang Tse. Relógio D'Água Editores [Tradução e Comentários de António Miguel de Campos].
Lao Tse (2010). Tao Te King - O livro do Caminho e do Bom Caminhar. Relógio D'Água Editores [Tradução e Comentários de António Miguel de Campos].
Towler, S. (2016). Practicing the Tao Te Ching - 81 Steps in the Way. Sounds True.
Towler, S. (2019). Tao-Te King : uma jornada para o caminho perfeito : lições práticas sobre o taoismo. Editora Pensamento-Cultrix [prefácio de Chungliang Al Huang; tradução Claudia Gerpe Duarte e Eduardo Gerpe Duarte].
Texto revisto com OpenAI: ChatGPT [Software]. https://openai.com
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