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Yoga do Conhecimento - A Segunda Estância da Bhagavad Gita

  • Foto do escritor: Raquel Silva
    Raquel Silva
  • 25 de fev.
  • 11 min de leitura

No meio do campo de batalha de Kurukshetra, Arjuna estava tomado pela incerteza. Diante dele, o exército inimigo alinhava-se, pronto para o combate. Mas ele não via apenas guerreiros; via rostos conhecidos, mestres que o ensinaram, tios e amigos de infância. O peso da guerra esmagava o seu coração. Como poderia erguer a sua arma contra aqueles que respeitava e amava?

 

Ele olhou para Krishna, o seu amigo e condutor da carruagem, em busca de respostas. Com os olhos marejados e a voz trêmula, confessou a sua angústia:

— Krishna, como posso lutar contra Bhishma e Drona? São homens que sempre respeitei! Melhor seria viver na miséria a ganhar um reino banhado no sangue dos meus próprios familiares. O meu coração está em conflito, a minha mente está confusa. Eu volto-me a ti, ó Guia, para que me ensines o que é certo. Não sei o que fazer… mas sei que não posso lutar.

Arjuna largou o seu arco e caiu no assento da carruagem, vencido pela dúvida.

 

Krishna observou Arjuna com um olhar sereno. O seu amigo, o grande guerreiro, agora hesitava, consumido pelo medo e pela tristeza. Com um leve sorriso, respondeu:

— Arjuna, de onde vem essa fraqueza? Esta hesitação não condiz com um guerreiro como tu. O medo e a tristeza não pertencem a quem busca a verdade. Levanta-te! Enfrenta esta batalha com coragem!

 

Arjuna baixou a cabeça, sentindo-se ainda mais perdido.

— Como podes dizer isso, Krishna? Como posso lutar sabendo que a minha vitória trará apenas sofrimento? Como poderei viver sabendo que destruí aqueles que amo?

 

Krishna suspirou e, com paciência, começou a revelar uma verdade que transcendia a guerra:

— Arjuna, estás a sofrer porque vês apenas a superfície da vida. Mas os sábios não lamentam pelos vivos ou pelos mortos. A alma nunca nasce, nem morre. Ela apenas habita diferentes corpos, como alguém que troca de vestimentas velhas por novas. A morte não é um fim, assim como o nascimento não é um começo. Tudo o que vês é passageiro, mas o espírito é eterno.

 

Arjuna escutava atentamente, tentando absorver aquelas palavras.

— O que sentes agora, essa dor, essa incerteza, são apenas ilusões criadas pela mente. O frio e o calor, o prazer e a dor, todos vêm e vão. Aprende a suportá-los sem te deixares abalar. A verdadeira sabedoria é manter-se firme, sem se apegar ao que é temporário.

 

O guerreiro respirou fundo, tentando compreender. Mas uma dúvida ainda o corroía.

— Se a alma é imortal, por que devo lutar?

 

Krishna sorriu.

— Porque esta é a tua missão. És um guerreiro, e a tua obrigação é lutar por aquilo que é justo. Fugir do teu dever não te trará paz. A verdadeira honra está em agir sem apego ao resultado. Não lutes por glória, poder ou vingança. Luta porque é o certo a se fazer. O verdadeiro sábio age sem se preocupar com as consequências, pois sabe que apenas as ações são suas, nunca os frutos delas.

 

Arjuna sentiu um peso a ser retirado do seu peito. Ele começou a perceber a guerra de outra forma. Não se tratava apenas de vencer ou perder, mas de cumprir o seu dever com coragem e honra.

 

— Então, Krishna… estás a dizer-me que devo agir sem medo, sem apego, confiando que tudo faz parte de algo maior?

 

— Exatamente, meu amigo — Krishna assentiu. — Quando entenderes isso, encontrarás paz, independentemente do que aconteça.

 

Arjuna começa a perceber que a sua batalha é mais do que física – é um conflito interno entre dúvida e sabedoria. Ainda com dor no coração, mas também clareza, Arjuna não está pronto para a guerra, mas uma batalha foi vencida.



O Real e o Ilusório

O que é real é eterno e imutável; o que é ilusório está sempre a mudar. Krishna explica a Arjuna que o mundo material é transitório, e apenas a alma, que nunca nasce nem morre é verdadeira:

O corpo é efémero, mas a alma é imutável. Assim como trocamos roupas desgastadas por novas, a alma apenas assume diferentes formas ao longo das vidas. O sábio não se lamenta pelo que muda.

Krishna ensina Arjuna sobre a jornada contínua da alma, explicando que a existência não começa no nascimento nem termina na morte. A evolução espiritual continua através das reencarnações, onde cada vida é uma oportunidade de aprendizagem e crescimento. Este conceito está presente em várias tradições filosóficas e religiosas. A filosofia hindu vê a vida como uma corrente contínua, fluindo do passado, através do presente, para um futuro infinito. A reencarnação é a lei natural que rege esse fluxo. Assim como uma pessoa troca de vestimentas gastas por roupas novas, a alma abandona um corpo que já cumpriu o seu propósito e assume outro, continuando a sua jornada de aprendizagem.


Alguns rejeitam esta perspectiva argumentando que pessoas jovens também morrem, mesmo sem um corpo aparentemente desgastado. Mas Krishna explica que a alma troca de corpo não apenas por desgaste físico, mas porque a sua evolução exige uma nova experiência. Assim como um indivíduo pode mudar de casa ou de veículo quando sente necessidade, a alma troca de corpo quando aquele que habita já não lhe serve mais. Neste sentido, assim como não lamentamos o fim da infância porque sabemos que ela dá lugar à juventude, também não devemos temer a morte. Ela não representa o fim da existência, mas apenas uma transição para um novo estado de ser. As pessoas sábias compreendem esta verdade e, por isso, não se angustiam com a morte.


De um ponto de vista espiritual, o entendimento da reencarnação ajuda-nos a superar o medo da morte e a perceber a vida como uma jornada contínua, onde cada experiência tem um propósito maior. Este ensinamento também expressa uma verdade psicológica: ao longo da nossa vida, experimentamos muitas mortes simbólicas, igualmente assustadoras. A resistência à mudança e o medo do desconhecido são reflexo disso.


Krisha ensina que todas as experiências – alegria, dor, calor e frio – são passageiras, e que a verdadeira sabedoria consiste em manter-se firme, sem apego às oscilações da vida. O sofrimento nasce quando nos identificamos com o transitório e esquecemos a nossa essência eterna. Deste ponto de vista, o verdadeiro problema de Arjuna não é a guerra em si, mas a sua identificação com o ego. Da mesma forma, o nosso sofrimento humano no século XXI nasce da nossa identificação com fragmentos de nós mesmos - com sensações, percepções e expectativas, com a imagem que construímos de nós mesmos, ou com a imagem que os outros nos impõem! Ao nos apegamos a essas ilusões, aprisionamo-nos à instabilidade da mente e perdemo-nos em devaneios que nos afastam da nossa verdadeira natureza.


A raiz do sofrimento

O ego surge quando esquecemos a nossa verdadeira essência. Ele cria a ilusão da separação, gerando medo, tristeza e apego. Esta falsa identificação leva-nos a sofrer, seja por perdas ou ganhos temporários, sem perceber que a essência da vida está além dessas dualidades.

 — O sofrimento só existe quando te identificas com o que é passageiro — diz Krishna. — Se compreenderes que és mais do que o teu corpo e a tua mente, descobrirás a paz inabalável.

Arjuna está confuso porque vê a situação através do apego pessoal, em vez de compreender a sua missão como parte de algo maior. Do mesmo modo, quando nos identificamos apenas com o nosso corpo, mente e emoções, aprisionamo-nos no sofrimento e ilusão.


Construímos narrativas incompletas de nós mesmos: "Eu sou depressiva", "Eu sou diabético", "Eu sou luz", etc... Ao fazê-lo, reduzimos a nossa identidade a um só aspecto, ignorando as infinitas possibilidades do ser. Da mesma forma, quando nos identificamos cegamente com o que a sociedade, a cultura ou a ciência dizem que somos, apenas trocamos umas lentes por outras. Nenhuma dessas definições é imutável ou eterna.

A vida é um mistério para ser vivido, não um enigma a ser resolvido.

Existe a busca, com a pluralidade dos seus caminhos, mas todos eles são parte do ilusório, pois estão em constante mudança. O truque é aquietar e testemunhar as mudanças sem se identificar com elas. A alma de cada ser humano é eterna, mas, quando se identifica com o corpo e os sentidos, vê-se presa ao mundo das formas e projeções. É como um rio que se esquece de que é água e acredita ser apenas uma onda passageira.


As Gunas: Os Três Princípios da Natureza

De acordo com a filosofia védica, tudo na criação opera sob três forças fundamentais conhecidas como Gunas: sattva (harmonia e conhecimento), rajas (paixão e atividade) e tamas (inércia e destruição). Estes três princípios influenciam todas as áreas da vida, desde a personalidade humana até a forma como os eventos se desenrolam no mundo. Algumas pessoas são naturalmente criativas e inovadoras (sattva), outras destacam-se na organização e manutenção (rajas) e algumas preferem encerrar ciclos e dissolver estruturas obsoletas (tamas). Estas tendências manifestam-se em todas as esferas: carreiras têm um começo, meio e fim; os alimentos são cultivados, consumidos e deterioram-se; tudo segue este fluxo universal.


Krishna explica que viver sob a influência das gunas significa estar constantemente sujeito a mudanças e instabilidades. Algumas pessoas apegam-se à busca pelo sucesso e conhecimento (sattva), outras ao desejo de controlo e conquistas (rajas), enquanto algumas se resignam à apatia e estagnação (tamas). Nenhuma destas abordagens leva à paz duradoura. Para alcançar a paz e a liberdade espiritual, é necessário transcender estas forças. Mas como podemos ir além de algo que governa toda a existência material?

A resposta está em reconhecer que não somos apenas matéria, mas sim alma. A alma não está sujeita às oscilações das gunas e, ao cultivarmos a conexão com a nossa essência espiritual, libertamo-nos das suas influências.


O Controlo dos Sentidos

Krishna alerta que os sentidos, quando descontrolados, levam à insatisfação e ao sofrimento. Ele descreve o ciclo destrutivo:

  1. O desejo surge ao fixarmos a nossa mente em algo externo.

  2. Quando esse desejo não é satisfeito, gera frustração.

  3. A frustração transforma-se em raiva.

  4. A raiva leva à confusão e à perda da razão.

  5. A mente perturbada afasta-se da sabedoria e perde o discernimento.

  6. Sem discernimento, a pessoa perde-se no caos da ilusão.


A solução? Praticar o autocontrolo e encontrar contentamento interior. Quem domina os sentidos e não se deixa levar por desejos impulsivos alcança a verdadeira felicidade.

Lembre-se: A raiz do sofrimento está na ilusão de que o mundo material - o mundo dos sentidos - é permanente.


A Sabedoria e a Ação Correta

Nos Upanishads, são descritos dois caminhos para a realização espiritual: o caminho inferior, que envolve boas ações feitas esperando recompensas, e o caminho superior, que consiste em agir sem apego ao resultado. No caminho mais elevado, a própria ação torna-se uma bênção, pois a pessoa sente gratidão por ter a oportunidade de servir. Este é o caminho que conduz mais rapidamente à autorrealização.


O verdadeiro serviço não busca reconhecimento, mas sim o bem maior. Assim, o ideal é trabalhar como um ato de serviço, sem expectativas. Isto é o  Karma Yoga: agir sem obsessão pelo sucesso ou fracasso.


O sofrimento surge quando colocamos o ego e o desejo de controlo acima da simplicidade de servir. Mesmo ações benéficas, se feitas com segundas intenções, perdem o seu valor. Por exemplo, uma empresa pode doar dinheiro para ajudar crianças carentes, mas se a doação for usada para autopromoção, o ato perde o seu valor altruísta. O verdadeiro serviço não procura reconhecimento, apenas a alegria de ajudar. O ato de dar, sem expectativas, traz uma satisfação profunda, maior do que qualquer recompensa material.


Arjuna está dominado pela ansiedade e pelo apego aos resultados, Krishna ensina que a liberdade vem quando agimos sem apego aos frutos de nossas ações. Devemos apenas dar o nosso melhor, sem tentar manipular os resultados. O sucesso não está nas nossas mãos, mas sim nas mãos do divino. Quando aceitamos isto, livramo-nos do medo do fracasso e da culpa.


Trabalhar apenas por interesse próprio aprisiona a mente. O ideal é agir com devoção e entrega, como um canal da vontade divina. O Bhakti Yoga, ou caminho da devoção, ensina que quando a ação se torna uma oferenda ao divino, livramo-nos do medo e da ansiedade, alcançando a paz interior.


Arjuna aprende que a verdadeira ação surge do dharma, o propósito maior. Krishna ensina que:

  • A ação correta não se mede pelo resultado, mas pela intenção pura.

  • O equilíbrio é essencial: aceitar tanto o sucesso quanto o fracasso sem se perturbar (equanimidade).

  • O conhecimento liberta, dissolvendo as ilusões do ego.

  • Aquele que age sem apego encontra a paz interior e a verdadeira realização espiritual.


Lembre-se que a verdadeira liberdade espiritual não está em evitar a ação, mas em agir sem apego ao resultado. Muitas pessoas acreditam que a iluminação exige renúncia total, mas Krishna ensina que a verdadeira renúncia não é abandonar o mundo, e sim abandonar a obsessão pelos frutos das ações.


Ética na Bhagavad Gita

Os ensinamentos da Gita falam da natureza da alma, do desapego e da transcendência do sofrimento. No entanto, quando aplicados ao plano concreto, requerem um fundamento ético sólido para que não sejam usados de forma destrutiva.


A Gita oferece um ensinamento profundo sobre o desapego, a ação correta e a aceitação da realidade para além da ilusão. No entanto, quando estes ensinamentos são retirados do seu contexto filosófico e aplicados de forma indiscriminada, podem ser usados para justificar ações antiéticas, violência ou manipulação. Por exemplo:

  • O conceito de Dharma pode ser usado para justificar atos cruéis sob o pretexto de "cumprir um dever".

  • O desapego aos frutos da ação pode ser distorcido como desculpa para agir sem consideração pelas consequências.

  • A aceitação da realidade pode ser mal interpretada como resignação passiva diante de injustiças e abusos.


Krishna ensina sobre a ação correta, mas nunca diz que qualquer ação é justificável sob o pretexto de "dharma". Para que os ensinamentos sejam aplicados de forma ética e justa, é essencial considerar:

  1. A intenção da ação – Deve ser guiada pelo bem coletivo e não por interesses egoístas ou sectários.

  2. A sabedoria e o discernimento – Agir sem apego não significa agir sem consciência.

  3. O princípio da não-violência (ahimsa– A ação deve minimizar o sofrimento desnecessário.

  4. A responsabilidade moral individual – Não devemos seguir cegamente um conceito de "destino" sem refletir sobre o impacto real das nossas ações.


A Gita fortalece o espírito e traz clareza, mas deve ser estudada com questionamento e consciência crítica. Se um ensinamento espiritual não conduz a uma vida mais ética e compassiva, então algo está errado – seja na interpretação ou na sua aplicação.


A verdadeira espiritualidade não pode ser uma fuga da realidade nem um mecanismo de manipulação, mas um caminho para transformar a vida mundana em um espaço mais equilibrado e justo. Se um ensinamento leva ao sofrimento alheio ou à desconexão da realidade, não é verdadeira espiritualidade, mas ideologia disfarçada de sabedoria.


Conclusão


O Yoga do Conhecimento da Bhagavad Gita ensina que:

  • A realidade transcende as percepções sensoriais.

  • O medo e a dúvida são superados através da ação correta.

  • O desapego aos frutos da ação conduz à liberdade e à iluminação.


Estes ensinamentos intemporais podem ser aplicados na vida moderna:

  • Karma e Responsabilidade – As nossas escolhas moldam o futuro. Agir com consciência gera benefícios.

  • Dharma e Propósito – Descobrir a nossa vocação dá sentido à vida.

  • Superação de Divisões – Reconhecer a humanidade no outro reduz conflitos e fomenta a empatia.

  • Ação sem Raiva – Agir com calma e compaixão evita arrependimentos.

  • Serviço Altruísta – Pequenos atos de bondade transformam o mundo e fortalecem o espírito.


Krishna transforma a crise de Arjuna numa oportunidade de crescimento, lembrando-nos de que a ação fundamentada na sabedoria e no desapego é a chave para a paz interior e a realização plena.


Questionar é um sinal de maturidade espiritual – o verdadeiro conhecimento não oprime nem confunde; ele liberta e traz clareza. Assim como Arjuna, não devemos aceitar cegamente a tradição, mas sim buscar a verdade com consciência crítica e ética.


Bibliografia

Feuerstein, G. e Feuerstein, B. (2015). Bhagavad-Gītā: uma nova tradução.  Editora Pensamento-Cultrix [tradução do inglês por Marcelo Brandão Cipolla].

Swami Chinmayananda (1996). Holy Geeta. Central Chinmaya Mission Trust [Comentários de Swami Chinmayananda].

Swami Sadashiva Tirtha (2007). Bhagavad Gita for Modern Times: Secrets to Attaining Inner Peace & Harmony. Sat Yuga Press.

Vyasa (2022). Bhagavadgita: O Canto do Bem-Aventurado. Edições Agnimile/Nova Acrópole [tradução do sânscrito e introdução por Ricardo Louro Martins].

Texto revisto com OpenAI: ChatGPT [https://openai.com]

Imagem criada com inteligência artificial generativa [freepik.com].

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